quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Do espaço e do tempo


Dante Gabriel Rossetti, Giotto pintando retrato de Dante (1852, 36,8 x 47 cm)


Por vezes, sinto-me numa grande paixão platônica: boa parte das pessoas que gosto ou que admiro mora muito longe, e a maioria das músicas que gosto foi composta por gente que já morreu.

Há uma boa dose de nostalgia nisso. Sinto-me partícipe de coisas que não vivi, talvez idealizando-as e mesmo assim vivendo-as. Os festivais nos quais provavelmente não iria se vivesse na época em que ocorreram, as pessoas que tenho por ídolos e com quem talvez tentasse me corresponder. Talvez talves tal ves pensei vivê-las, memórias criadas a partir de canções de época e de filmes em preto e branco. Vivências retroativas, meus amigos que não conheci e os que estão longe demais -- no tempo e no espaço -- para dividirmos um café numa tarde fria de sábado.

Toda nostalgia é um desejo de retorno. Odisseu já a sentia quando estava na ilha de Calipso, pleno de gozo que a ninfa podia-lhe proporcionar, mas concomitantemente vazio de sentido, sem Penélope e Telêmaco a seu lado, ausente de Laerte, seu pai e ex-governante de terra natal, Ítaca. Ele chegava a sofrer, tamanha sua vontade de retorno, de alcançar o nostos. Não é à toa que a palavra grega que representa o retorno ecoa em nossa língua no vocábulo nostalgia. Não é à toa também que dentro de nostalgia haja dor, algé em grego. Não, não é à toa. Mesmo os caminhos errantes dos idiomas, das línguas pátrias que se beijam e se digladiam, trazem sabedoria, e é a sabedoria de mestiçagem, da inserção do diferente, seja o diferente no tempo, seja o no espaço.

E é essa sabedoria que me salva. Toda essa mistura de espaços e de épocas, tudo num ponto focal, tal qual o aleph borgiano, que é nada menos que meu espírito e meu modo de absorver os dados que o mundo me dá. No final das contas, as facetas que não enxergo das pessoas e das coisas eu acabo por construí-las, vou fazendo simulacros e tornando as pessoas melhores do que elas são (e em alguns casos, piores, por que não?). Viram exemplos a serem seguidos, e é assim que melhoro como pessoa. A maneira de minha irmã -- que mora tão longe -- enfrentar as mudanças e sobrepôr-se a elas; o modo admirável como minha amiga Karen enxerga o mundo, a capacidade de Machado desvendar a alma do homem, a extração da humorística poesia do simples de José Paulo Paes, a invenção de Borges, a delicadeza de Neruda, os tantos compositores e poetas sem nome, que deles sobra apenas a obra e o engenho sem rosto, os operários dos monumentos de grandes fundações, o garçom que me sorri às nove da noite.

Ninguém conhece ninguém de verdade. É impossível. Estar sentado ao lado de alguém não me torna mais partícipe de sua vida do que escutar toda a obra de Ernesto Nazareth me permite conhecê-lo, mas posso chamar ambos, Ernesto e a pessoa do lado, de amigo. Para isso, deve haver um sentimento raro e uma atitude necessária: a afinidade e o respeito. Da junção de ambos nasce a admiração, e dela advêm os modelos, que se somam à busca do autoconhecimento. De todo esse tortuoso processo de nostalgia, pertencimento e aprendizagem, venho surgindo como um homem melhor dia após dia, e é por este motivo que não posso negar essa paixão e esse desejo de voltar para onde nunca estive.



Sobre cabelos, a falta deles e o divertir-se consigo


Fayga Ostrower,  Tempestade (1999, aquarela sobre papel arches - 75,5 x 56,5 cm) 


Venho notando ao longo dos anos que algo em mim diminui pouco a pouco. De começo tive vergonha em aceitar tal mudança, decidi tomar medidas e remédios, tentei fazer o relógio retroceder; posso dizer que obtive um pouco de sucesso, mas desisti da empreitada. De que falo? De meus cabelos.

Na infância, a irmã me chamava de Ovelha, por conta dos cachos. Hoje, além dela, meus sobrinhos; virei o tio Ovelha. O vizinho de vovó me provocava com o apelido de Biro-Biro, e uma tia brincava comigo, "venha cá, senhor Deus Menino". Meus cachos sempre foram uma das características que me identificavam. Curioso, por ser algo tão externo. Nos prendemos demais às superficialidades, talvez porque seja este o primeiro ponto de contato entre as pessoas. Como o início de uma relação se dá pelo intermédio da visão, é natural que estereótipos se afirmem, e mesmo que os estereotipados se aferroem a esses lugares-comuns.

De minha parte, decidi assumir a carequice. Posição tomada há mais de dois anos, quando "parei de me cuidar" nesse aspecto, agora apenas aproveito as brincadeiras dos familiares e rio de mim mesmo, algo que sempre fiz, mas com mais um elemento nessa equação de autotiração de sarro. Levo-me na brincadeira, apesar de brincadeira ser coisa muito séria.

Ah, sim. Não estou calvo, mas com clareiras à moda franciscana, assim como meu pai esteve. Não sou de vaidades intensas, mas diria isso tem lá seu charme.

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Música medieval

As coisas estão bem corridas (tenho um livro para entregar semana que vem, não deveria estar escrevendo neste momento, mas agora já estou) e quero falar sobre o tema deste texto de um modo menos de passagem, o que espero fazer brevemente. Deixarei apenas um registro rápido, o de que a caixa de música que carrego no peito ganhou mais um compartimento: às canções brasileiras do início dos anos 1930 até os 1960 juntam-se a música do Medievo europeu.

Estou fascinado pelo que venho ouvindo, desde a música de teor sacro até os Carmina Burana, e é bom frisar aqui que não estou falando de música erudita no sentido forte do termo, mas de cantigas, composições jogralescas, cançonetas, saltarellos e música de relativo teor popular.

Uma boa mostra disso é uma das canções do Carmina Burana, Tempus est iocundus (O tempo está alegre), interpretada pelo grupo espanhol Artefactum. E interpretada mesmo, basta ver as brincadeiras vocais ao final da canção, um belo modo de interpretar o amor e sua relação com o voto de virgindade dos monges -- os carmina são uma coletânea de canções de caráter múltiplo, desde poemas sobre o vinho, passando pelo amor e pelos jogos de azar, até hinos religiosos. Eles foram compostos entre os séculos XI e XIII por monges germânicos conhecidos como goliardos, estudantes que, como a maioria nos dias de hoje e em todos os tempos, gostavam de um pouco de bagunça. Mas é preciso ratificar que há muitas composições de fundo moralizante e mesmo satíricas, que batiam de frente com a Cúria Papal da época e suas vestes de brocados dourados.

Tempus est iocundum, interpretada por Artefactum.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Expectativas para o futuro

quando nasci, me disse um anjo cansado
não tão torto, a cara era um tacho:
"Vai Nota Fiscal Paulista?"