Por vezes, sinto-me numa grande paixão platônica: boa parte das pessoas que gosto ou que admiro mora muito longe, e a maioria das músicas que gosto foi composta por gente que já morreu.
Há uma boa dose de nostalgia nisso. Sinto-me partícipe de coisas que não vivi, talvez idealizando-as e mesmo assim vivendo-as. Os festivais nos quais provavelmente não iria se vivesse na época em que ocorreram, as pessoas que tenho por ídolos e com quem talvez tentasse me corresponder. Talvez talves tal ves pensei vivê-las, memórias criadas a partir de canções de época e de filmes em preto e branco. Vivências retroativas, meus amigos que não conheci e os que estão longe demais -- no tempo e no espaço -- para dividirmos um café numa tarde fria de sábado.
Toda nostalgia é um desejo de retorno. Odisseu já a sentia quando estava na ilha de Calipso, pleno de gozo que a ninfa podia-lhe proporcionar, mas concomitantemente vazio de sentido, sem Penélope e Telêmaco a seu lado, ausente de Laerte, seu pai e ex-governante de terra natal, Ítaca. Ele chegava a sofrer, tamanha sua vontade de retorno, de alcançar o nostos. Não é à toa que a palavra grega que representa o retorno ecoa em nossa língua no vocábulo nostalgia. Não é à toa também que dentro de nostalgia haja dor, algé em grego. Não, não é à toa. Mesmo os caminhos errantes dos idiomas, das línguas pátrias que se beijam e se digladiam, trazem sabedoria, e é a sabedoria de mestiçagem, da inserção do diferente, seja o diferente no tempo, seja o no espaço.
E é essa sabedoria que me salva. Toda essa mistura de espaços e de épocas, tudo num ponto focal, tal qual o aleph borgiano, que é nada menos que meu espírito e meu modo de absorver os dados que o mundo me dá. No final das contas, as facetas que não enxergo das pessoas e das coisas eu acabo por construí-las, vou fazendo simulacros e tornando as pessoas melhores do que elas são (e em alguns casos, piores, por que não?). Viram exemplos a serem seguidos, e é assim que melhoro como pessoa. A maneira de minha irmã -- que mora tão longe -- enfrentar as mudanças e sobrepôr-se a elas; o modo admirável como minha amiga Karen enxerga o mundo, a capacidade de Machado desvendar a alma do homem, a extração da humorística poesia do simples de José Paulo Paes, a invenção de Borges, a delicadeza de Neruda, os tantos compositores e poetas sem nome, que deles sobra apenas a obra e o engenho sem rosto, os operários dos monumentos de grandes fundações, o garçom que me sorri às nove da noite.
Ninguém conhece ninguém de verdade. É impossível. Estar sentado ao lado de alguém não me torna mais partícipe de sua vida do que escutar toda a obra de Ernesto Nazareth me permite conhecê-lo, mas posso chamar ambos, Ernesto e a pessoa do lado, de amigo. Para isso, deve haver um sentimento raro e uma atitude necessária: a afinidade e o respeito. Da junção de ambos nasce a admiração, e dela advêm os modelos, que se somam à busca do autoconhecimento. De todo esse tortuoso processo de nostalgia, pertencimento e aprendizagem, venho surgindo como um homem melhor dia após dia, e é por este motivo que não posso negar essa paixão e esse desejo de voltar para onde nunca estive.